A educação da população brasileira foi e, ainda é, um dos maiores desafios de uma sociedade que manteve, historicamente, grande parte de seu povo alijado de todos os direitos civis, sociais e econômicos.
Darcy Ribeiro, cujo centenário de nascimento celebramos neste ano, repetiu, muitas vezes, que para as “elites cruéis e apátridas do Brasil, o povo não passava de um reles carvão para queimar na produção de mercadorias”.
Os 388 anos de escravidão oficial, seguidos por muitas medidas impeditivas para que os/as ex-escravizados/as pudessem usufruir das riquezas nacionais e dos direitos que deveriam vir com a condição cidadã, propalada pela proclamação da República, mantiveram estagnado por séculos, o acesso universal à educação e à garantia do direito ao desenvolvimento humano pleno.
Anísio Teixeira, um dos pioneiros na luta por uma educação pública, laica, universal e integral, alertava para a relação intrínseca entre educação e democracia, não sendo possível prospectar uma sociedade democrática, sem que o conjunto da população tivesse acesso à escola comum, não dualista, garantidora do desenvolvimento humano, em suas diferentes e múltiplas dimensões.
Nos intervalos democráticos vividos desde o fim da monarquia, a educação foi, sem dúvida alguma, um campo aberto de disputas, seja por legislações garantidoras de direitos, por financiamento/aportes significativos de recursos, ou por concepções pedagógicas e políticas que confrontavam a instituída sociedade de privilégios.
Os Manifestos de 1932 e de 1959 refletiam movimentos presentes na sociedade brasileira e que clamavam pelo dever do Estado em relação à garantia da oferta e da qualidade de uma educação universal, gratuita, laica e conectada ao mundo real. Expressavam de modo veemente o papel da educação em um projeto de país soberano, livre, desenvolvido.
Na esteira destes Manifestos, as iniciativas de construção de um projeto de educação, para superação dos arcaísmos e exclusões características do funcionamento escolar, passaram, entre outras, por obras significativas como as escolas municipais do Rio de Janeiro da gestão do prefeito Pedro Ernesto, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro no Bairro da Liberdade em Salvador, os Ginásios Vocacionais do estado de São Paulo, as Escolas Parque-Escolas Classe do projeto de construção de Brasília e, até, pelas brizoletas espalhadas pelo estado Rio Grande do Sul, pelo governador Leonel Brizola, cujo centenário de nascimento, também tem lugar neste ano de 2022.
As ditaduras impostas ao Brasil no século XX, dispersaram todas estas iniciativas, quando não as destruíram materialmente, incidindo fortemente contra os movimentos de luta pelo direito à educação de qualidade para todos e todas. Incidiram, também, tristemente nas memórias destes movimentos, dificultando sempre a retomada dos esforços,o conhecimento e o respeito pelos caminhos já trilhados.
Na contramão destas avalanches, e, especificamente, no contexto da retomada democrática que o Brasil viveu entre 1988 e 2016, foram constituídos fundamentos basilares, do ponto de vista legal, para a democratização da educação e para que a qualidade da educação fosse pautada na integralidade do desenvolvimento humano, como direito a ser garantido para todos/as os/as brasileiros/as. Assim, a Constituição Federal de 1988,o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 – LDB e os Planos Nacionais de Educação apontaram o pleno desenvolvimento como princípio da educação nacional.
Apesar disto, foram lentos e descontínuos os esforços, tanto para retomar e honrar as memórias do que o Brasil já foi capaz de construir, na perspectiva de uma educação integral, quanto para fazer avançar as iniciativas contemporâneas nesta direção: escola para todos/as, ao longo da educação básica, de amplos horizontes formativos e de tempos e espaços alargados, como dever do Poder Público nos âmbitos municipal, estadual e federal.
No período recente, anterior a ruptura democrática provocada por forças conservadoras em de 2016 – sob diferentes e escusos interesses, no contexto do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE, 2007) ganhou força, uma ação do governo federal denominada Programa Mais Educação, que se consolidou como uma estratégia de indução de uma agenda pedagógica, curricular e intersetorial/articulada, para uma educação
integral, prioritariamente no ensino fundamental, mas com desdobramentos importantes para o ensino médio através do Programa Ensino Médio Inovador.Tal ação teve significativo impacto para a retomada e/ou qualificação de programas municipais e estaduais de educação integral, indução de novas ações que chegaram a 60 mil escolas públicas e, também, para a construção da meta 6 do Plano Nacional de Educação,com suas estratégias. Com este Programa, escolas no país inteiro focaram olhares e esforços nas possibilidades abertas para ampliação/reconfiguração dos tempos, espaços e oportunidades educacionais, na perspectiva da promoção do desenvolvimento pleno dos/as estudantes, previsto constitucionalmente.
Tais processos foram abruptamente interrompidos em 2016, com o impedimento da então presidente Dilma Rousseff e revelaram, uma vez mais, a brutalidade dos que temem uma escola pública qualificadora e autonomizadora dos filhos e filhas do povo. Este contexto de retomadas, seguidas de cortes e silenciamentos, impõe aos pesquisadores e pesquisadoras da área da educação a necessidade da realização de estudos e pesquisas sobre as políticas educacionais e seus rumos, em muitos temas e, especificamente, no âmbito da chamada educação integral, horizonte ainda longínquo para a educação pública e popular, apesar de esforços tanto históricos quanto recentes. Impõe, igualmente, a necessidade de manter vivas as memórias de possibilidades materializadas em tempos de respiros democráticos.
Pensar a educação integral, no contexto da escola de educação básica, implica a superação do arraigado dualismo entre desenvolvimento intelectual, cultural, emocional e físico, implica recompor a unidade corpo, mente e espírito, historicizada e temporalizada pelas condições reais de existência de nossos meninos e meninas, assim como a superação do abismo das condições de funcionamento e de acesso ao saber, nas escolas em que estudam os/as filhos/as das diferentes classes sociais. Ao mesmo tempo, implica a superação da naturalização do tempo exíguo, das práticas excludentes e dos métodos arcaicosarraigados em nosso sistema educacional.
A Constituição Federal, no artigo 214 indica a lei que estabelece o Plano Nacional de Educação – PNE, prevendo diferentes e amplas ações, que conduzem à qualificação da educação no país com atenção à integralidade do ser, trazendo a promoção humanística,científica e tecnológica como um dos objetivos centrais. Dessa forma, a lei nº 13.005/2014,que aprova o Plano Nacional de Educação vigente, estabelece como meta, até o ano de 2024, que 50% das escolas públicas devem ofertar a educação em tempo integral, e pelo menos 25% dos alunos da educação básica.
Diante dessa meta e do contexto distópico atual, de tantos retrocessos, quais são os desafios postos para avançarmos na perspectiva de uma escola comum para a população brasileira, que seja de dia completo e de currículo integral, como apontava Anísio Teixeira, já nos anos 1940?
Neste sentido, considerando a expressiva ação educacional na perspectiva da educação integral, no período 2007-2016 e a produção correlata de conhecimentos, sobretudo em dissertações e teses, buscamos nessa seção temática, reunir estudos e reflexões acerca de diferentes aspectos políticos e pedagógicos deste campo do conhecimento, que é, ao mesmo tempo um campo de práticas educacionais e sociais.
Apresentamos um conjunto de artigos que discutem diferentes aspectos das políticas e práticas educacionais, na perspectiva da formação humana integral, analisando e problematizando ações que tenham compromisso com a cidadania, com a garantia do direito à educação, em consonância com o PNE.
O conceito de currículo integrado é apresentado para o debate a partir do trabalho de Juarez da Silva Thiesen e Paula Cortinhas de Carvalho Becker que contribuem com uma pesquisa acadêmica realizada entre 2017 e 2021 na UFSC, analisando as potencialidades da integração curricular para a formação humana integral em quatro projetos/ experiências desenvolvidos no país: o Programa Mais Educação no âmbito nacional, a Escola Pública Integrada no âmbito estadual, e no âmbito municipal, o Projeto Educação Integral da Escola Básica Municipal Intendente Aricomedes da Silva – EBIAS/Florianópolis e Projeto Escola Integrada/ Belo Horizonte.
Um olhar reflexivo sobre a participação dos professores na construção das propostas de educação em jornada ampliada é apresentado por Diovane César Resende Ribeiro, Regina Maria Rovigatti Simões e Wagner Wey Moreira, que examinam narrativas acerca de experiências e desenvolvimento profissional de docentes dos anos iniciais da rede municipal de Uberaba- MG que participavam do Programa de Educação em Tempo Integral.
Maria José Marques amplia as reflexões acerca dos processos de formação de professores/as, a partir da experiência municipal de Santos- SP com o Programa Escola Total, no período de 2005 a 2012, trazendo para a discussão aspectos organizacionais e pedagógicos das escolas em jornada ampliada e a relevância das articulações entre as universidades e as escolas de educação básica.
O conceito de decolonialidade é apresentado por Ana Maria Pereira Aires, Maria de Fátima Garcia e Nazineide Brito, refletindo sobre as complexidades da sociedade contemporânea e analisando as potencialidades da educação integral, a partir de um estudo documental do Referencial Curricular do Rio Grande do Norte, na perspectiva intercultural.
O estudo de Miriam Tronnolone e Vanda Donizeti Vergueiro Renaud aborda a rede intersetorial de proteção integral das crianças e adolescentes prevista na legislação brasileira,especificamente na região de Pinheiros, na cidade de São Paulo-SP, no período de 2016 a 2018. Reflete sobre o papel das redes para a articulação e integração entre os diversos serviços públicos, como base necessária para educação integral.
JAQUELINE MOLL* – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre- RS, Brasil.
RENATA GERHARDT DE BARCELOS** – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre- RS, Brasil.