A curricularização da extensão e a Educação Integral: política central para o Brasil – Parte 2

Penildon Silva Filho, Silvia Maria Leite de Almeida, Alessandra Santos de Assis e Márcia de Freitas Cordeiro

Salvador | 20 de setembro de 2024 às 15:55

image processing20230602 1000 331jwm
A curricularização da extensão na Educação integral pode ter vários efeitos – AFP

Abordamos na “Parte 1” do presente texto o contexto histórico da “Curricularização da Extensão na Universidade brasileira”; e agora na “Parte 2” debateremos “A Curricularização da Extensão, a permanência na escola e o Capital Social”, assim como os vínculos sociais dos estudantes e suas comunidades e a Intersetorialidade de políticas públicas e a contribuição do Brasil para uma prática social universitária.

A Curricularização da Extensão, a permanência na escola e o “Capital Social”

Entretanto, a curricularização da extensão na Educação integral pode ter vários efeitos. Por exemplo, no ensino médio hoje, cerca de metade dos jovens de 15 a 18 anos não consegue terminar essa etapa. Além disso, há cursos universitários que não conseguem preencher todas as vagas, não porque temos muitas vagas na Educação superior, até porque ainda não cumprimos a meta estabelecida pelo Plano Nacional de Educação de 2014, que previa que, em 2024, 33% dos jovens de 18 a 24 anos estariam na Educação superior. O Brasil ainda não atingiu essa meta, chegando a, no máximo, 24% desses jovens nesse nível de Educação. É pouco, especialmente quando comparamos com outros países. A Argentina, o Uruguai e o Chile têm cerca de 35% a 40% dos jovens na Educação superior, enquanto o Brasil tem 24%. Os Estados Unidos têm 70%, o Canadá 85%, e países como a França, a Espanha e Portugal têm 50% dos jovens nesse nível. Portanto, não se trata de excesso de vagas na Educação superior, mas sim da necessidade de formarmos mais estudantes no ensino médio.

Um ensino médio mais atrativo, que garanta uma maior identidade com o público jovem, pode se beneficiar significativamente da curricularização da extensão. Ao envolver estudantes universitários na ministração de conteúdos, em oficinas ou pesquisas para a solução de problemas, e ao trabalhar temas geradores de forma interdisciplinar, com a orientação de professores universitários, abre-se a possibilidade de tornar o ensino médio mais interessante e significativo, proporcionando uma aprendizagem mais relevante para esses alunos. Logicamente, a alta evasão no ensino médio não pode ser explicada exclusivamente por questões acadêmicas, mas principalmente por questões sociais. Por conta dessa constatação, o projeto “Pé de Meia” do governo federal, que estabelece uma transferência de renda para famílias com jovens no ensino médio, é muito relevante. Atualmente, 3,7 milhões de jovens no ensino médio já estão se beneficiando do “Pé de Meia”. No entanto, sabemos que, embora seja importante garantir essa transferência de renda, ela sozinha não será suficiente para garantir a permanência no Ensino Médio.

A curricularização da extensão pode contribuir para tornar o ensino médio mais significativo, com uma aprendizagem mais relevante para os jovens, e também para, na Educação superior, transformar a formação de professores e os cursos de bacharelados. A extensão universitária não se caracteriza apenas como uma via de mão única. Aqueles que mais se beneficiam das atividades de extensão não são as comunidades ou as escolas, que são o público-alvo dessas atividades, mas as próprias Universidades, que recebem uma série de contribuições, sugestões e impactos em suas formações, melhorando e transformando seus currículos. Concomitantemente, o currículo não apenas das Universidades será transformado, mas também o do Ensino Médio, resultando em uma modificação que pode ser vista como um avanço significativo.

Além de promover essa mudança curricular, a escola pública na Educação básica pode se tornar o grande lócus de um processo de intersetorialidade das políticas públicas. Este conceito é fundamental, pois compreende que as políticas públicas não devem estar segmentadas ou divididas de forma estanque, mas devem trabalhar de maneira interdisciplinar e intersetorial para garantir o atingimento de determinados objetivos e metas. Assim, a escola não é apenas um espaço para a aprendizagem de determinados conteúdos; é também um espaço para a efetivação de vários direitos da criança e do jovem: o direito à Saúde, à assistência social, a viver sem violência, à arte, à cultura.

A intersetorialidade pode se beneficiar muito da curricularização da extensão ao permitir que a escola, em parceria com a Universidade, introduza uma série de conhecimentos de áreas diversas, como Educação, Saúde, humanidades, ciência e tecnologia, além de uma série de projetos que podem permitir serviços públicos de assistência social, Saúde e defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Dessa forma, pode-se vislumbrar um grande avanço na intersetorialidade e na conformação da escola pública e da Educação básica como um espaço de agregação da comunidade no território. Isso leva a outro aspecto fundamental: à medida que a escola tem um tempo de Educação estendido, ela pode fortalecer os vínculos sociais de uma determinada comunidade. Hoje, a violência aparece como um dos principais pontos de preocupação de nossa população. Contudo, a violência não será combatida com mais policiamento, repressão, leis mais rígidas, maior tempo de cadeia ou com a diminuição da maioridade penal. A violência será reduzida com o fortalecimento dos laços sociais e com a melhoria das condições sociais de vida da população.

As experiências exitosas dos movimentos sociais e das políticas sociais, que buscam garantir maior desenvolvimento de determinadas comunidades, passam necessariamente pelo fortalecimento dos vínculos sociais. Utilizamos o conceito de “Capital Social”, trabalhado por Robert Putnam em suas pesquisas na Itália e em outros territórios, que associa Capital Social à confiança e à cooperação social. Quanto mais uma comunidade promove cooperação social e confiança entre os seus membros, seja em atividades econômicas, sociais ou políticas, maior será o desenvolvimento econômico, os índices de desenvolvimento social, o desempenho educacional e a solidez das suas instituições.

O Capital Social, a cooperação e a confiança, são fundamentais para que possamos construir uma sociedade com vínculos sociais que, por muito tempo, foram difíceis de serem estabelecidos. Nossa sociedade é herdeira de um sistema escravocrata, extremamente desigual, com altos níveis de concentração de renda e miséria. É uma sociedade marcada por uma estrutura de classes sociais dentro de um capitalismo selvagem, que não conseguiu garantir as condições mínimas de sobrevivência que mesmo o capitalismo central conseguiu em outros países, como na social-democracia europeia. No entanto, é importante perceber que, mesmo nesses países da social-democracia, os melhores níveis de vida foram alcançados devido a movimentos sociais que possuíam alta cooperação, confiança interna, o seu Capital Social.

Peter Drucker, um dos autores essenciais da administração/gestão, defendia a necessidade de um estilo de administração que promova o estabelecimento de vínculos, confiança e envolvimento dos indivíduos em projetos específicos, seja em empresas, organizações sociais ou no Estado. Drucker estudou movimentos sociais e organizações não governamentais, e constatou que, mesmo sem remuneração financeira, essas organizações conseguiam alcançar resultados superiores justamente devido ao estabelecimento de vínculos sociais, cooperação e confiança.

O território onde a escola está localizada tem diversos vínculos estabelecidos. A maneira do Estado brasileiro influenciar positivamente esses vínculos, para que se estabeleçam cooperação e confiança, inclusão social, desenvolvimento social, adensamento cultural e cognitivo, inclusão no mundo do trabalho e redução do espaço para o crime organizado, é por meio da Educação integral de tempo integral. Isso requer a abertura das escolas não apenas para os jovens e as crianças, mas também para a comunidade como um todo. Dessa forma também, o modelo de Educação integral em tempo integral se beneficiará significativamente da curricularização da extensão.

Os vínculos dos estudantes universitários

Diante disso, é importante observar que o estudante universitário, ao retornar à comunidade em atividades de extensão universitária, especialmente considerando que a maioria dos estudantes universitários hoje provém das classes populares devido às ações afirmativas, pode se integrar às escolas e fortalecer o seu próprio vínculo com a Universidade, tornando-se uma referência para os jovens dessas escolas darem continuidade aos estudos e ingressarem na Universidade, fortalecendo os vínculos entre Educação Básica e Universidade.

Os estudantes universitários atualmente são majoritariamente oriundos de escolas públicas, da classe trabalhadora e em sua maioria negros, pretos e pardos. Esse novo perfil estudantil, que muito nos alegra, indica o cumprimento da missão de inclusão social da Universidade. No retorno desses estudantes às escolas públicas para realizar atividades de extensão universitária, eles não apenas estarão participando de uma atividade acadêmica, possivelmente com o auxílio de uma bolsa para sua manutenção na Universidade, mas também fortalecerão seus vínculos com a Universidade e com as escolas de Educação básica. Esse estabelecimento de vínculos, que está na base do Capital Social, da cooperação e da confiança, pode se tornar um resultado efetivo da curricularização da extensão e da Educação integral de tempo integral.

Se houver a capacidade institucional para criar uma atuação intersetorial das políticas públicas e estimular todas as Universidades, não apenas as públicas, mas toda a Educação superior brasileira, a orientar estudantes em atividades de curricularização da extensão em escolas públicas, poderemos ter escolas públicas em tempo integral com um tempo qualificado e significativo, resultando em uma aprendizagem significativa para os alunos, uma subversão e inovação na prática pedagógica, e maior estímulo à permanência dos estudantes na Educação básica e no ensino superior pelo fortalecimento de seu Capital Social, de seus vínculos.

O Programa de Iniciação à Docência (PIBID) é um exemplo clássico de atividade de extensão universitária que pode servir de paradigma para os cursos de licenciatura e bacharelado. Nele, o estudante universitário, sob orientação de um professor universitário e em colaboração com um professor da Educação básica, interage com as turmas da Educação básica. Esse modelo pode efetivamente promover um trabalho intersetorial das políticas públicas, visando uma Educação de qualidade, com aprendizagem significativa, com inovação nos currículos universitários e da Educação Básica.  Caso possa se converter em políticas de permanência tanto na Educação básica quanto na Educação superior, melhor ainda.

O Brasil pode, mais uma vez, inovar. Já o fez com as Escolas Parque de Anísio Teixeira em Salvador, no Rio de Janeiro e em Brasília. Essas escolas não eram apenas instituições de ensino, mas verdadeiros bairros de aprendizagem, com bibliotecas, cinemas, espaços de convivência social e ambientes de aprendizagem interdisciplinar, que integravam ciência, arte, cultura, humanidades, formação para o mundo do trabalho e cultura corporal. Também inovamos com Darcy Ribeiro e os CIEPs na década de 1980, no Rio de Janeiro, e com os CEUs, centros de Educação integrada, em São Paulo. Inovações similares ocorreram com a Escola Plural de Miguel Arroyo, em Belo Horizonte; com a Escola Cabana, em Belém, no Pará; e em Porto Alegre, sob a liderança de Esther Pillar Grossi.

Intersetorialidade e a contribuição do Brasil

Agora, podemos inovar em nível nacional ao estabelecer uma política pública de intersetorialidade entre as políticas de Educação integral em tempo integral, conduzida pelo Ministério da Educação, e a política de curricularização da extensão, prevista no Plano Nacional de Educação e em resoluções do Conselho Nacional de Educação, que tornam essa prática obrigatória. Muitas Universidades já trabalham nessa perspectiva, e uma legislação já vincula a curricularização da extensão às escolas de tempo integra, como verificado acimal. Com esse arcabouço institucional, é essencial criar um espaço de gestão intersetorial que fortaleça esses vínculos.

Podemos aprender com exemplos nacionais como o Pibid e as experiências citadas de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Miguel Arroyo e outras inovações. Dessa forma, podemos garantir a permanência dos alunos na Educação básica e superior. Os alunos da Educação básica terão como modelo os universitários, que, através da extensão, estarão nas escolas realizando oficinas, trabalhos interdisciplinares e projetos temáticos. Essa identificação entre estudantes do ensino médio e universitários pode ser tão impactante quanto a política de permanência material proporcionada pelo programa “Pé de Meia”.
Ao mesmo tempo, os universitários, que hoje necessitam urgentemente de mais recursos para assistência estudantil, poderiam receber apoio através de bolsas para participar desses projetos de extensão nas escolas públicas, o que fortaleceria seus vínculos com essas escolas e as Universidades. Essa iniciativa contribuiria para a permanência desses estudantes no ensino superior e dos alunos do ensino médio em suas respectivas instituições.

As escolas públicas, que constituem a rede mais ampla e presente do Estado brasileiro em todos os territórios do país, são a base para um projeto de desenvolvimento nacional, que promova a reindustrialização verde, a transição socioecológica, a criação de empregos de maior qualificação e a elevação do nível de renda. Essas escolas podem estar em simbiose com as Universidades públicas, como sonharam Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro.
Nesse sentido, estamos ultrapassando a visão da Universidade como uma “torre de marfim” e a transformando em uma instituição de excelência acadêmica, com compromisso social e integrada a um projeto de desenvolvimento nacional e de Humanidade. A excelência acadêmica, comprovada pela melhora no desempenho das Universidades e a inclusão de alunos de baixa renda e das classes populares não são suficientes.

É crucial que haja um compromisso com um projeto de desenvolvimento que não seja predatório ao meio ambiente ou acumulador de renda, mas que promova uma mudança cultural no país e no planeta. Diante das disputas globais por diferentes projetos de desenvolvimento, o Brasil pode oferecer uma contribuição singular à humanidade: a criação de um projeto de desenvolvimento nacional de novo tipo, tendo a Educação como base, articulando de forma inseparável a Educação básica e a Universidade, por meio da curricularização da extensão e da Educação integral em tempo integral.

Edição: Alfredo Portugal

Fonte: Brasil de Fato

plugins premium WordPress